quarta-feira, 14 de abril de 2010

A volta da familia careta


por Lya Luft




"Perdoem-me os pais que se queixam de que os filhos são um fardo, de que faltam tempo, dinheiro, paciência. Receio que o fardo, o obstáculo e o estorvo a um crescimento saudável dos filhos sejam eles"
Foi tão grande e variado o número de e-mails, telefonemas e abordagens pessoais que recebi depois de escrever que família deveria ser careta, que resolvi voltar ao assunto, para alegria dos que gostaram e náusea dos que não concordaram ou não entenderam (ai da unanimidade, mãe dos medíocres). Atenção: na minha coluna não usei "careta" como quadrado, estreito, alienado, fiscalizador e moralista, mas humano, aberto, atento, cuidadoso. Obviamente empreguei esse termo de propósito, para enfatizar o que desejava. 




Houve quem dissesse que minha posição naquele artigo é politicamente conservadora demais. Pensei em responder que minha opinião sobre família nada tem a ver com postura política, eu que me considero um animal apolítico no sentido de partido ou de conceitos superados, como "a esquerda é inteligente e boa, a direita é grossa e arrogante". Mas, na verdade, tudo o que fazemos, até a forma como nos vestimos e moramos, é altamente político, no sentido amplo de interesse no justo e no bom, e coerência com isso.
E assim, sem me pensar de direita ou de esquerda, por ser interessada na minha comunidade, no meu país, no outro em geral, em tudo o que faço e escrevo (também na ficção), mostro que sou pelos desvalidos. Não apenas no sentido econômico, mas emocional e psíquico: os sem auto-estima, sem amor, sem sentido de vida, sem esperança e sem projetos.
O que tem isso a ver com minha idéia de família? Tem a ver, porque é nela que tudo começa, embora não seja restrito a ela. Pois muito se confunde família frouxa (o que significa sem atenção), descuidada (o que significa sem amor), desorganizada (o que significa aflição estéril) com o politicamente correto. Diga-se de passagem que acho o politicamente correto burro e fascista.
Voltando à família: acredito profundamente que ter filho é ser responsável, que educar filho é observar, apoiar, dar colo de mãe e ombro de pai, quando preciso. E é também deixar aquele ser humano crescer e desabrochar. Não solto, não desorientado e desamparado, mas amado com verdade e sensatez. Respeitado e cuidado, num equilíbrio amoroso dessas duas coisas. Vão me perguntar o que é esse equilíbrio, e terei de responder que cada um sabe o que é, ou sabe qual é seu equilíbrio possível. Quem não souber que não tenha filhos.
Também me perguntaram se nunca se justifica revirar gavetas e mexer em bolsos de adolescentes. Eventualmente, quando há suspeita séria de perigos como drogas, a relação familiar pode virar um campo de graves conflitos, e muita coisa antes impensável passa a se justificar. Deixar inteiramente à vontade um filho com problema de drogas é trágica omissão.
Assim como não considero bons pais ou mães os cobradores ou policialescos, também não acho que os do tipo "amiguinho" sejam muito bons pais. Repito: pais que não sabem onde estão seus filhos de 12 ou 14 anos, que nunca se interessaram pelo que acontece nas festinhas (mesmo infantis), que não conhecem nomes de amigos ou da família com quem seus filhos passam fins de semana (não me refiro a nomes importantes, mas a seres humanos confiáveis), que nada sabem de sua vida escolar, estão sendo tragicamente irresponsáveis. Pais que não arranjam tempo para estar com os filhos, para saber deles, para conversar com eles... não tenham filhos. Pois, na hora da angústia, não são os amiguinhos que vão orientá-los e ampará-los, mas o pai e a mãe – se tiverem cacife. O que inclui risco, perplexidade, medo, consciência de não sermos infalíveis nem onipotentes. Perdoem-me os pais que se queixam (são tantos!) de que os filhos são um fardo, de que falta tempo, falta dinheiro, falta paciência e falta entendimento do que se passa – receio que o fardo, o obstáculo e o estorvo a um crescimento saudável dos filhos sejam eles.
Mães que se orgulham de vestir a roupeta da filha adolescente, de freqüentar os mesmos lugares e até de conquistar os colegas delas são patéticas. Pais que se consideram parceiros apenas porque bancam os garotões, idem. Nada melhor do que uma casa onde se escutam risadas e se curte estar junto, onde reina a liberdade possível. Nada pior do que a falta de uma autoridade amorosa e firme.
O tema é controverso, mas o bom senso, meio fora de moda, é mais importante do que livros e revistas com receitas de como criar filho (como agarrar seu homem, como enlouquecer sua amante...). É no velhíssimo instinto, na observação atenta e na escuta interessada que resta a esperança. Se não podemos evitar desgraças – porque não somos deuses –, é possível preparar melhor esses que amamos para enfrentar seus naturais conflitos, fazendo melhores escolhas vida afora.

Para que filosofia?


Muito cultuada entre os gregos da Antiga Grécia, hoje é comum encontrarmos pessoas dizendo que Filosofia é uma inutilidade; que o filósofo é aquele que fica pensando e dizendo coisas que ninguém entende. Tais estultices encontram suas razões no tecnicismo, feto não abortado do mundo Globalizado que costuma atribuir a razão de existência das coisas somente se elas tiverem utilidade à favor do acúmulo de riqueza e, fundamentalmente, seja a curto prazo.
Todos querem ver a utilidade da Ciência à curto prazo. Os resultados cultuados como bons são aqueles que podem ser empíricos e imediatos. As ciências no mundo globalizante têm as pretensões de acreditarem na existência da verdade, das técnicas e metodologias corretas e na tecnologia como status de racionalidade.
Perdem de vista que a Filosofia é a mais antiga de todas as Ciências. Todos os campos dos saberes têm sua gênese na Filosofia. A Ciência parte de questões já formuladas e respondidas pela Filosofia. Tais respostas encontradas não devem ser tidas enquanto verdades absolutas, mas como algo tido como uma representação válida para o fenômeno – do contrário cairia no senso comum das coisas tidas como óbvias.
Fora da Ciência, a Filosofia pode ser uma fonte de conhecimento que pode nos ensinar muito. Uma arte do bem-viver que questiona e tráz respostas que podem nos servir para conviver em melhor harmonia e honestidade com outros seres humanos.

36. Os Actos dos Apóstolos testemunham que o anúncio cristão se encontrou, desde os seus primórdios, com as correntes filosóficas do tempo. Lá se refere a discussão que S. Paulo teve com « alguns filósofos epicuristas e estóicos » (17, 18). A análise exegética do discurso no Areópago evidenciou repetidas alusões a ideias populares, predominantemente de origem estóica. Certamente isso não se deu por acaso; os primeiros cristãos, para se fazerem compreender pelos pagãos, não podiam citar apenas « Moisés e os profetas » nos seus discursos, mas tinham de servir-se também do conhecimento natural de Deus e da voz da consciência moral de cada homem (cf. Rom 1, 19-21; 2, 14-15; Act 14, 16-17). Como, porém, na religião pagã, esse conhecimento natural tinha degenerado em idolatria (cf. Rom 1, 21-32), o Apóstolo considerou mais prudente ligar o seu discurso ao pensamento dos filósofos, que desde o início tinham contraposto, aos mitos e cultos mistéricos, conceitos mais respeitosos da transcendência divina. De facto, um dos cuidados que mais a peito tiveram os filósofos do pensamento clássico, foi purificar de formas mitológicas a concepção que os homens tinham de Deus. Bem sabemos que a religião grega, como grande parte das religiões cósmicas, era politeísta, chegando a divinizar até coisas e fenómenos da natureza. As tentativas do homem para compreender a origem dos deuses e, nestes, a do universo tiveram a sua primeira expressão na poesia. As teogonias permanecem, até hoje, o primeiro testemunho desta investigação do homem. Os pais da filosofia tiveram por missão mostrar a ligação entre a razão e a religião. Estendendo o olhar para os princípios universais, deixaram de contentar-se com os mitos antigos e procuraram dar fundamento racional à sua crença na divindade. Embocou-se assim uma estrada que, saindo das antigas tradições particulares, levava a um desenvolvimento que correspondia às exigências da razão universal. O fim que tal desenvolvimento tinha em vista era a verificação crítica daquilo em que se acreditava. A primeira a ganhar com esse caminho feito foi a concepção da divindade. As superstições acabaram por ser reconhecidas como tais, e a religião, pelo menos em parte, foi purificada pela análise racional. Foi nesta base que os Padres da Igreja instituíram um diálogo fecundo com os filósofos antigos, abrindo a estrada ao anúncio e à compreensão do Deus de Jesus Cristo. 37. Quando se menciona este movimento de aproximação dos cristãos à filosofia, é obrigatório recordar também a cautela com que eles olhavam outros elementos do mundo cultural pagão, como, por exemplo, a gnose. A filosofia, enquanto sabedoria prática e escola de vida, podia facilmente ser confundida com um conhecimento de tipo superior, esotérico, reservado a poucos iluminados. É, sem dúvida, a especulações esotéricas deste género que pensa S. Paulo, quando adverte os Colossenses: « Vede que ninguém vos engane com falsas e vãs filosofias, fundadas nas tradições humanas, nos elementos do mundo, e não em Cristo » (2, 8). Como são actuais estas palavras do Apóstolo, quando as referimos às diversas formas de esoterismo que hoje se difundem mesmo entre alguns crentes, privados do necessário sentido crítico! Seguindo as pegadas de S. Paulo, outros escritores dos primeiros séculos, particularmente Santo Ireneu e Tertuliano, puseram reservas a uma orientação cultural que pretendia subordinar a verdade da Revelação à interpretação dos filósofos. 38. Como vemos, o encontro do cristianismo com a filosofia não foi fácil nem imediato. A exercitação desta e a frequência das respectivas escolas foi vista mais vezes pelos primeiros cristãos como transtorno, do que como uma oportunidade. Para eles, a primeira e mais urgente missão era o anúncio de Cristo ressuscitado, que havia de ser proposto num encontro pessoal, capaz de levar o interlocutor à conversão do coração e ao pedido do Baptismo. De qualquer modo, isso não significa que ignorassem a obrigação de aprofundar a compreensão da fé e suas motivações; antes pelo contrário. É injusta e pretextuosa a crítica de Celso, quando acusa os cristãos de serem gente « iletrada e rude ». (31) A explicação deste seu desinteresse inicial tem de ser procurada noutro lado. Na realidade, o encontro com o Evangelho oferecia uma resposta tão satisfatória à questão do sentido da vida, até então insolúvel, que frequentar os filósofos parecia-lhes uma coisa sem interesse e, em certos aspectos, superada. Isto é, hoje, ainda mais claro, se se pensa ao contributo dado pelo cristianismo, quando defende o acesso à verdade como um direito universal. Derrubadas as barreiras raciais, sociais e sexuais, o cristianismo tinha anunciado, desde as suas origens, a igualdade de todos os homens diante de Deus. A primeira consequência deste conceito registou-se no tema da verdade, ficando decididamente superado o carácter elitista que a sua busca tinha no pensamento dos antigos: se o acesso à verdade é um bem que permite chegar a Deus, todos devem estar em condições de poder percorrer esta estrada. As vias para chegar à verdade continuam a ser muitas; mas, dado que a verdade cristã tem valor salvífico, cada uma delas só pode ser percorrida se conduzir à meta final, ou seja, à revelação de Jesus Cristo. Como pioneiro dum encontro positivo com o pensamento filosófico, sempre marcado por um prudente discernimento, há que recordar S. Justino. Apesar da grande estima que continuava a ter pela filosofia grega depois da sua conversão, afirmava decidida e claramente que tinha encontrado, no cristianismo, « a única filosofia segura e vantajosa ». (32) De forma semelhante, Clemente de Alexandria chamava ao Evangelho « a verdadeira filosofia », (33) e, em analogia com a lei mosaica, via a filosofia como uma instrução propedêutica à fé cristã (34) e uma preparação ao Evangelho. (35) Uma vez que « a filosofia anela por aquela sabedoria que consiste na rectidão da alma e da palavra e na pureza da vida, está aberta à sabedoria e tudo faz para a alcançar. No nosso meio, designam-se por filósofos os que amam a sabedoria que é criadora e mestra de tudo, isto é, o conhecimento do Filho de Deus ».(36) Segundo este pensador alexandrino, a filosofia grega não tem como primeiro objectivo completar ou corroborar a verdade cristã; a sua função é, sobretudo, a defesa da fé: « A doutrina do Salvador é perfeita em si mesma e não precisa de apoio, porque é a força e a sabedoria de Deus. A filosofia grega não torna mais forte a verdade com o seu contributo, mas, porque torna impotente o ataque da sofística e desarma os assaltos traiçoeiros contra a verdade, foi justamente chamada sebe e muro de vedação da vinha ».(37) 39. Entretanto, na história deste desenvolvimento, é possível constatar a assunção crítica do pensamento filosófico por parte dos pensadores cristãos. No meio dos primeiros exemplos encontrados, sobressai, sem dúvida, Orígenes. Contra os ataques lançados pelo filósofo Celso, ele recorre à filosofia platónica para argumentar e responder-lhe. Citando vários elementos do pensamento platónico, começa a elaborar uma primeira forma de teologia cristã. Naquele tempo, a designação mesma de teologia e a sua concepção como discurso racional sobre Deus ainda estavam ligadas à sua origem grega. Na filosofia aristotélica, por exemplo, o termo designava a parte mais nobre e o verdadeiro apogeu do discurso filosófico. Mas, à luz da revelação cristã, o que anteriormente indicava uma doutrina genérica sobre a divindade, passou a assumir um significado totalmente novo, ou seja, a reflexão que o crente realiza para exprimir a verdadeira doutrina acerca de Deus. Este pensamento cristão novo, que estava a desenvolver-se, servia-se da filosofia, mas ao mesmo tempo tendia a distinguir-se nitidamente dela. A história revela que o próprio pensamento platónico, quando foi assumido pela teologia, sofreu profundas transformações, especialmente em conceitos como a imortalidade da alma, a divinização do homem e a origem do mal. 40. Nesta obra de cristianização do pensamento platónico e neoplatónico, merecem menção particular os Padres Capadócios, Dionísio chamado o Areopagita e sobretudo Santo Agostinho. O grande Doutor ocidental contactara diversas escolas filosóficas, mas todas o tinham desiludido. Quando se lhe deparou a verdade da fé cristã, então teve a força de realizar aquela conversão radical a que os filósofos anteriormente contactados não tinham conseguido induzi-lo. Ele mesmo refere o motivo: « Preferindo a doutrina católica, já sentia, então, que era mais razoável e menos enganoso sermos obrigados a crer o que não demonstrava, quer houvesse prova, mesmo que esta não estivesse ao alcance de qualquer pessoa, quer a não houvesse. Seria isto mais sensato do que zombarem da crença os maniqueístas, apoiados em temerária promessa de ciência, para depois nos mandarem acreditar em inúmeras fábulas tão absurdas que as não podiam provar ». (38) Quanto aos platónicos, que ocupavam lugar privilegiado nos pontos de referimento de Agostinho, este censurava-os porque, embora conhecessem o fim para onde se devia tender, tinham, porém, ignorado o caminho que lá conduzia: o Verbo encarnado. (39) O Bispo de Hipona conseguiu elaborar a primeira grande síntese do pensamento filosófico e teológico, nela confluindo correntes do pensamento grego e latino. Também nele a grande unidade do saber, que tinha o seu fundamento no pensamento bíblico, acabou por ser confirmada e sustentada pela profundidade do pensamento especulativo. A síntese feita por Santo Agostinho permanecerá como a forma mais elevada de reflexão filosófica e teológica que o Ocidente, durante séculos, conheceu. Com uma história pessoal intensa e ajudado por uma admirável santidade de vida, ele foi capaz de introduzir, nas suas obras, muitos dados que, apelando-se à experiência, antecipavam já futuros desenvolvimentos de algumas correntes filosóficas. 41. De diversas formas, pois, os Padres do Oriente e do Ocidente entraram em relação com as escolas filosóficas. Isto não significa que tenham identificado o conteúdo da sua mensagem com os sistemas a que faziam referência. A pergunta de Tertuliano: « Que têm em comum Atenas e Jerusalém? Ou, a Academia e a Igreja? », (40) é um sintoma claro da consciência crítica com que os pensadores cristãos encararam, desde as origens, o problema da relação entre a fé e a filosofia, vendo-o globalmente, tanto nos seus aspectos positivos como nas suas limitações. Não eram pensadores ingénuos. Precisamente porque viviam de forma intensa o conteúdo da fé, eles conseguiam chegar às formas mais profundas da reflexão. Por isso, é injusto e redutivo limitar o seu trabalho a mera transposição das verdades de fé para categorias filosóficas. Eles fizeram muito mais; conseguiram explicitar plenamente aquilo que resultava ainda implícito e preliminar no pensamento dos grandes filósofos antigos. (41) Estes, conforme já disse, tiveram a função de mostrar o modo como a razão, livre dos vínculos externos, podia escapar do beco sem saída dos mitos, para melhor se abrir à transcendência. Uma razão purificada e recta era capaz de se elevar aos níveis mais elevados da reflexão, dando fundamento sólido à percepção do ser, do transcendente e do absoluto. Aqui mesmo se insere a novidade operada pelos Padres. Acolheram a razão na sua plena abertura ao absoluto e, nela, enxertaram a riqueza vinda da Revelação. O encontro não foi apenas questão de culturas, uma das quais talvez seduzida pelo fascínio da outra; mas verificou-se no íntimo da alma, e foi um encontro entre a criatura e o seu Criador. Ultrapassando o fim mesmo para o qual inconscientemente tendia por força da sua natureza, a razão pôde alcançar o sumo bem e a suma verdade na pessoa do Verbo encarnado. Ao encararem as filosofias, os Padres não tiveram medo de reconhecer tanto os elementos comuns como as diferenças que aquelas apresentavam relativamente à Revelação. A percepção das convergências não ofuscava neles o reconhecimento das diferenças. 42. Na teologia escolástica, o papel da razão educada filosoficamente torna-se ainda mais notável sob o impulso da interpretação anselmiana do intelectus fidei. Segundo o santo Arcebispo de Cantuária, a prioridade da fé não faz concorrência à investigação própria da razão. De facto, esta não é chamada a exprimir um juízo sobre os conteúdos da fé; seria incapaz disso, porque não é idónea. A sua tarefa é, antes, saber encontrar um sentido, descobrir razões que a todos permitam alcançar algum entendimento dos conteúdos da fé. Santo Anselmo sublinha o facto de que o intelecto deve pôr-se à procura daquilo que ama: quanto mais ama, mais deseja conhecer. Quem vive para a verdade, tende para uma forma de conhecimento que se inflama num amor sempre maior por aquilo que conhece, embora admita que ainda não fizera tudo aquilo que estaria no seu desejo: « Ad te videndum factus sum; et nondum feci propter quod factus sum ». (42) Assim, o desejo da verdade impele a razão a ir sempre mais além; esta fica como que embevecida pela constatação de que a sua capacidade é sempre maior do que aquilo que alcança. Chegada aqui, porém, a razão é capaz de descobrir onde está o termo do seu caminho: « Penso efectivamente que, quem investiga uma coisa incompreensível, se deve contentar de chegar, pela razão, a reconhecer com a máxima certeza a sua existência real, embora não seja capaz de penetrar, pela inteligência, o seu modo de ser (…). Aliás, que há de tão incompreensível e inefável como aquilo que está acima de tudo? Portanto, se aquilo de cuja essência suprema discutimos até agora, ficou estabelecido sobre razões necessárias, ainda que a inteligência não o possa penetrar de forma a conseguir traduzi-lo em palavras claras, nem por isso vacila minimamente o fundamento da sua certeza. Com efeito, se uma reflexão anterior compreendeu de maneira racional que é incompreensível (rationabiliter comprehendit incomprehensibile esse) o modo como a sabedoria suprema sabe aquilo que fez (…) , quem explicará como ela mesma se conhece e exprime, dado que sobre ela o homem nada ou quase nada pode saber? ». (43) Confirma-se assim, uma vez mais, a harmonia fundamental entre o conhecimento filosófico e o conhecimento da fé: a fé requer que o seu objecto seja compreendido com a ajuda da razão; por sua vez a razão, no apogeu da sua indagação, admite como necessário aquilo que a fé apresenta. Fragmento Carta Encíclica Fides et Ratio . João Paulo II


36. Os Actos dos Apóstolos testemunham que o anúncio cristão se encontrou, desde os seus primórdios, com as correntes filosóficas do tempo. Lá se refere a discussão que S. Paulo teve com « alguns filósofos epicuristas e estóicos » (17, 18). A análise exegética do discurso no Areópago evidenciou repetidas alusões a ideias populares, predominantemente de origem estóica. Certamente isso não se deu por acaso; os primeiros cristãos, para se fazerem compreender pelos pagãos, não podiam citar apenas « Moisés e os profetas » nos seus discursos, mas tinham de servir-se também do conhecimento natural de Deus e da voz da consciência moral de cada homem (cf. Rom 1, 19-21; 2, 14-15; Act 14, 16-17). Como, porém, na religião pagã, esse conhecimento natural tinha degenerado em idolatria (cf. Rom 1, 21-32), o Apóstolo considerou mais prudente ligar o seu discurso ao pensamento dos filósofos, que desde o início tinham contraposto, aos mitos e cultos mistéricos, conceitos mais respeitosos da transcendência divina.
De facto, um dos cuidados que mais a peito tiveram os filósofos do pensamento clássico, foi purificar de formas mitológicas a concepção que os homens tinham de Deus. Bem sabemos que a religião grega, como grande parte das religiões cósmicas, era politeísta, chegando a divinizar até coisas e fenómenos da natureza. As tentativas do homem para compreender a origem dos deuses e, nestes, a do universo tiveram a sua primeira expressão na poesia. As teogonias permanecem, até hoje, o primeiro testemunho desta investigação do homem. Os pais da filosofia tiveram por missão mostrar a ligação entre a razão e a religião. Estendendo o olhar para os princípios universais, deixaram de contentar-se com os mitos antigos e procuraram dar fundamento racional à sua crença na divindade. Embocou-se assim uma estrada que, saindo das antigas tradições particulares, levava a um desenvolvimento que correspondia às exigências da razão universal. O fim que tal desenvolvimento tinha em vista era a verificação crítica daquilo em que se acreditava. A primeira a ganhar com esse caminho feito foi a concepção da divindade. As superstições acabaram por ser reconhecidas como tais, e a religião, pelo menos em parte, foi purificada pela análise racional. Foi nesta base que os Padres da Igreja instituíram um diálogo fecundo com os filósofos antigos, abrindo a estrada ao anúncio e à compreensão do Deus de Jesus Cristo.
37. Quando se menciona este movimento de aproximação dos cristãos à filosofia, é obrigatório recordar também a cautela com que eles olhavam outros elementos do mundo cultural pagão, como, por exemplo, a gnose. A filosofia, enquanto sabedoria prática e escola de vida, podia facilmente ser confundida com um conhecimento de tipo superior, esotérico, reservado a poucos iluminados. É, sem dúvida, a especulações esotéricas deste género que pensa S. Paulo, quando adverte os Colossenses: « Vede que ninguém vos engane com falsas e vãs filosofias, fundadas nas tradições humanas, nos elementos do mundo, e não em Cristo » (2, 8). Como são actuais estas palavras do Apóstolo, quando as referimos às diversas formas de esoterismo que hoje se difundem mesmo entre alguns crentes, privados do necessário sentido crítico! Seguindo as pegadas de S. Paulo, outros escritores dos primeiros séculos, particularmente Santo Ireneu e Tertuliano, puseram reservas a uma orientação cultural que pretendia subordinar a verdade da Revelação à interpretação dos filósofos.
38. Como vemos, o encontro do cristianismo com a filosofia não foi fácil nem imediato. A exercitação desta e a frequência das respectivas escolas foi vista mais vezes pelos primeiros cristãos como transtorno, do que como uma oportunidade. Para eles, a primeira e mais urgente missão era o anúncio de Cristo ressuscitado, que havia de ser proposto num encontro pessoal, capaz de levar o interlocutor à conversão do coração e ao pedido do Baptismo. De qualquer modo, isso não significa que ignorassem a obrigação de aprofundar a compreensão da fé e suas motivações; antes pelo contrário. É injusta e pretextuosa a crítica de Celso, quando acusa os cristãos de serem gente « iletrada e rude ». (31) A explicação deste seu desinteresse inicial tem de ser procurada noutro lado. Na realidade, o encontro com o Evangelho oferecia uma resposta tão satisfatória à questão do sentido da vida, até então insolúvel, que frequentar os filósofos parecia-lhes uma coisa sem interesse e, em certos aspectos, superada.
Isto é, hoje, ainda mais claro, se se pensa ao contributo dado pelo cristianismo, quando defende o acesso à verdade como um direito universal. Derrubadas as barreiras raciais, sociais e sexuais, o cristianismo tinha anunciado, desde as suas origens, a igualdade de todos os homens diante de Deus. A primeira consequência deste conceito registou-se no tema da verdade, ficando decididamente superado o carácter elitista que a sua busca tinha no pensamento dos antigos: se o acesso à verdade é um bem que permite chegar a Deus, todos devem estar em condições de poder percorrer esta estrada. As vias para chegar à verdade continuam a ser muitas; mas, dado que a verdade cristã tem valor salvífico, cada uma delas só pode ser percorrida se conduzir à meta final, ou seja, à revelação de Jesus Cristo.
Como pioneiro dum encontro positivo com o pensamento filosófico, sempre marcado por um prudente discernimento, há que recordar S. Justino. Apesar da grande estima que continuava a ter pela filosofia grega depois da sua conversão, afirmava decidida e claramente que tinha encontrado, no cristianismo, « a única filosofia segura e vantajosa ». (32) De forma semelhante, Clemente de Alexandria chamava ao Evangelho « a verdadeira filosofia », (33) e, em analogia com a lei mosaica, via a filosofia como uma instrução propedêutica à fé cristã (34) e uma preparação ao Evangelho. (35) Uma vez que « a filosofia anela por aquela sabedoria que consiste na rectidão da alma e da palavra e na pureza da vida, está aberta à sabedoria e tudo faz para a alcançar. No nosso meio, designam-se por filósofos os que amam a sabedoria que é criadora e mestra de tudo, isto é, o conhecimento do Filho de Deus ».(36) Segundo este pensador alexandrino, a filosofia grega não tem como primeiro objectivo completar ou corroborar a verdade cristã; a sua função é, sobretudo, a defesa da fé: « A doutrina do Salvador é perfeita em si mesma e não precisa de apoio, porque é a força e a sabedoria de Deus. A filosofia grega não torna mais forte a verdade com o seu contributo, mas, porque torna impotente o ataque da sofística e desarma os assaltos traiçoeiros contra a verdade, foi justamente chamada sebe e muro de vedação da vinha ».(37)
39. Entretanto, na história deste desenvolvimento, é possível constatar a assunção crítica do pensamento filosófico por parte dos pensadores cristãos. No meio dos primeiros exemplos encontrados, sobressai, sem dúvida, Orígenes. Contra os ataques lançados pelo filósofo Celso, ele recorre à filosofia platónica para argumentar e responder-lhe. Citando vários elementos do pensamento platónico, começa a elaborar uma primeira forma de teologia cristã. Naquele tempo, a designação mesma de teologia e a sua concepção como discurso racional sobre Deus ainda estavam ligadas à sua origem grega. Na filosofia aristotélica, por exemplo, o termo designava a parte mais nobre e o verdadeiro apogeu do discurso filosófico. Mas, à luz da revelação cristã, o que anteriormente indicava uma doutrina genérica sobre a divindade, passou a assumir um significado totalmente novo, ou seja, a reflexão que o crente realiza para exprimir a verdadeira doutrina acerca de Deus. Este pensamento cristão novo, que estava a desenvolver-se, servia-se da filosofia, mas ao mesmo tempo tendia a distinguir-se nitidamente dela. A história revela que o próprio pensamento platónico, quando foi assumido pela teologia, sofreu profundas transformações, especialmente em conceitos como a imortalidade da alma, a divinização do homem e a origem do mal.
40. Nesta obra de cristianização do pensamento platónico e neoplatónico, merecem menção particular os Padres Capadócios, Dionísio chamado o Areopagita e sobretudo Santo Agostinho. O grande Doutor ocidental contactara diversas escolas filosóficas, mas todas o tinham desiludido. Quando se lhe deparou a verdade da fé cristã, então teve a força de realizar aquela conversão radical a que os filósofos anteriormente contactados não tinham conseguido induzi-lo. Ele mesmo refere o motivo: « Preferindo a doutrina católica, já sentia, então, que era mais razoável e menos enganoso sermos obrigados a crer o que não demonstrava, quer houvesse prova, mesmo que esta não estivesse ao alcance de qualquer pessoa, quer a não houvesse. Seria isto mais sensato do que zombarem da crença os maniqueístas, apoiados em temerária promessa de ciência, para depois nos mandarem acreditar em inúmeras fábulas tão absurdas que as não podiam provar ». (38) Quanto aos platónicos, que ocupavam lugar privilegiado nos pontos de referimento de Agostinho, este censurava-os porque, embora conhecessem o fim para onde se devia tender, tinham, porém, ignorado o caminho que lá conduzia: o Verbo encarnado. (39) O Bispo de Hipona conseguiu elaborar a primeira grande síntese do pensamento filosófico e teológico, nela confluindo correntes do pensamento grego e latino. Também nele a grande unidade do saber, que tinha o seu fundamento no pensamento bíblico, acabou por ser confirmada e sustentada pela profundidade do pensamento especulativo. A síntese feita por Santo Agostinho permanecerá como a forma mais elevada de reflexão filosófica e teológica que o Ocidente, durante séculos, conheceu. Com uma história pessoal intensa e ajudado por uma admirável santidade de vida, ele foi capaz de introduzir, nas suas obras, muitos dados que, apelando-se à experiência, antecipavam já futuros desenvolvimentos de algumas correntes filosóficas.
41. De diversas formas, pois, os Padres do Oriente e do Ocidente entraram em relação com as escolas filosóficas. Isto não significa que tenham identificado o conteúdo da sua mensagem com os sistemas a que faziam referência. A pergunta de Tertuliano: « Que têm em comum Atenas e Jerusalém? Ou, a Academia e a Igreja? », (40) é um sintoma claro da consciência crítica com que os pensadores cristãos encararam, desde as origens, o problema da relação entre a fé e a filosofia, vendo-o globalmente, tanto nos seus aspectos positivos como nas suas limitações. Não eram pensadores ingénuos. Precisamente porque viviam de forma intensa o conteúdo da fé, eles conseguiam chegar às formas mais profundas da reflexão. Por isso, é injusto e redutivo limitar o seu trabalho a mera transposição das verdades de fé para categorias filosóficas. Eles fizeram muito mais; conseguiram explicitar plenamente aquilo que resultava ainda implícito e preliminar no pensamento dos grandes filósofos antigos. (41) Estes, conforme já disse, tiveram a função de mostrar o modo como a razão, livre dos vínculos externos, podia escapar do beco sem saída dos mitos, para melhor se abrir à transcendência. Uma razão purificada e recta era capaz de se elevar aos níveis mais elevados da reflexão, dando fundamento sólido à percepção do ser, do transcendente e do absoluto.
Aqui mesmo se insere a novidade operada pelos Padres. Acolheram a razão na sua plena abertura ao absoluto e, nela, enxertaram a riqueza vinda da Revelação. O encontro não foi apenas questão de culturas, uma das quais talvez seduzida pelo fascínio da outra; mas verificou-se no íntimo da alma, e foi um encontro entre a criatura e o seu Criador. Ultrapassando o fim mesmo para o qual inconscientemente tendia por força da sua natureza, a razão pôde alcançar o sumo bem e a suma verdade na pessoa do Verbo encarnado. Ao encararem as filosofias, os Padres não tiveram medo de reconhecer tanto os elementos comuns como as diferenças que aquelas apresentavam relativamente à Revelação. A percepção das convergências não ofuscava neles o reconhecimento das diferenças.
42. Na teologia escolástica, o papel da razão educada filosoficamente torna-se ainda mais notável sob o impulso da interpretação anselmiana do intelectus fidei. Segundo o santo Arcebispo de Cantuária, a prioridade da fé não faz concorrência à investigação própria da razão. De facto, esta não é chamada a exprimir um juízo sobre os conteúdos da fé; seria incapaz disso, porque não é idónea. A sua tarefa é, antes, saber encontrar um sentido, descobrir razões que a todos permitam alcançar algum entendimento dos conteúdos da fé. Santo Anselmo sublinha o facto de que o intelecto deve pôr-se à procura daquilo que ama: quanto mais ama, mais deseja conhecer. Quem vive para a verdade, tende para uma forma de conhecimento que se inflama num amor sempre maior por aquilo que conhece, embora admita que ainda não fizera tudo aquilo que estaria no seu desejo: « Ad te videndum factus sum; et nondum feci propter quod factus sum ». (42) Assim, o desejo da verdade impele a razão a ir sempre mais além; esta fica como que embevecida pela constatação de que a sua capacidade é sempre maior do que aquilo que alcança. Chegada aqui, porém, a razão é capaz de descobrir onde está o termo do seu caminho: « Penso efectivamente que, quem investiga uma coisa incompreensível, se deve contentar de chegar, pela razão, a reconhecer com a máxima certeza a sua existência real, embora não seja capaz de penetrar, pela inteligência, o seu modo de ser (…). Aliás, que há de tão incompreensível e inefável como aquilo que está acima de tudo? Portanto, se aquilo de cuja essência suprema discutimos até agora, ficou estabelecido sobre razões necessárias, ainda que a inteligência não o possa penetrar de forma a conseguir traduzi-lo em palavras claras, nem por isso vacila minimamente o fundamento da sua certeza. Com efeito, se uma reflexão anterior compreendeu de maneira racional que é incompreensível (rationabiliter comprehendit incomprehensibile esse) o modo como a sabedoria suprema sabe aquilo que fez (…) , quem explicará como ela mesma se conhece e exprime, dado que sobre ela o homem nada ou quase nada pode saber? ». (43)
Confirma-se assim, uma vez mais, a harmonia fundamental entre o conhecimento filosófico e o conhecimento da fé: a fé requer que o seu objecto seja compreendido com a ajuda da razão; por sua vez a razão, no apogeu da sua indagação, admite como necessário aquilo que a fé apresenta.

Fragmento Carta Encíclica Fides et Ratio .
João Paulo II

A CRÍTICA DE QUINE AOS DOIS DOGMAS DO EMPIRISMO



 Alysson Fernando da Cruz[1]
Resumo: 
Quine faz uma crítica ao empirismo moderno, sua crítica aos dois princípios que são tidos como dogmas desse período, com a sua reprovação ao significado dos termos de analítico e sintético, que são separados e analisados separadamente por duas áreas, ele afirma que isso não pode ocorrer, pelo contrário deve se fazer uma relação com os dois, outro ponto que crítica é o reducionismo da analise das sentenças, a partir desta, que se desenvolverá uma demonstração dessa crítica feita aos empiristas. A sua crítica não fica somente a esses pontos, mas vai além como, por exemplo, a tradução radical e também a posição da epistemologia.  


1. Introdução
            O presente artigo tem como objetivo demonstrar as críticas realizadas por Quine em virtude aos empiristas moderno, e apresentar as conseqüências da mesma.
            Willard van Orman Quine (1908 - 2000), um dos principais filósofos americano, publicou vários artigos, e um dos seus mais brilhantes publicado no ano de 1951 sob o título Two dogmas of empiricism (Dois dogmas do empirismo). Que faz uma crítica sobre os dois princípios, dogmas que norteiam o empirismo moderno. E em 1969 publica outro fascinante ensaio intitulado Ontological Relativity and Other Essays(Epistemologia naturalizada), que tenta dar um novo status para epistemologia.  
O empirismo moderno foi em grande parte condicionado por dois dogmas. O primeiro dogma é a crença em certa divisão fundamental entre verdades analíticas, ou fundadas em fatos; e sintéticos. Que ambos dá a idéia segundo a qual os enunciados de uma teoria se dividem em duas classes: os analíticos, necessários e a priori, e os sintéticos e a posteriori.
 E o segundo dogma que Quine apresenta a sua crítica é oreducionismo, é a crença que todo enunciado significativo é equivalente a algum construto lógico se referem á experiência imediata. 
O reducionismo, da a idéia que conforme a qual todo enunciado com significado pode ser reduzido a dados observáveis imediatos.
Quine pode se apresentar como um demolidor de grande parte da tradição filosófica, ele mesmo afirma sobre esses dois dogmas dizendo que ambos os dogmas, devo sustentar, que são mal fundamentados[2].
Tenta desfazer a barreira de distinção entre analítico e sintético, assim desfazendo essa fronteira que se crê separar a metafísica especulativa da ciência natural, e com isso acaba reforçando a concepção pragmatista, característica do pensamento de Peirce.
Uma conseqüência da critica de Quine é a concepção do holismo.
Quine, afirma, que não trabalha com dúvidas, mas sim com certezas, essa é uma marca de sua filosofia.
A epistemologia tem um ganho na sua forma de pensar e agir, mesmo usando do próprio empirismo para reemplantar a metafísica e a ciência.
Para uma melhor compreensão o artigo está dividido em duas partes a primeira: um olhar sobre a crítica de Quine aos dois dogmas do empirismo, e a segunda as conseqüências das críticas de Quine ao empirismo moderno.
2. Crítica de Quine aos dois dogmas do empirismo
Uma das suas críticas se caracteriza na separação que os empiristas fazem entre analítico e sintéticos, que são sustentados separadamente, não concorda com essa formulação ele afirma que não podem ser vistos separados, mas sim utilizar os dois para chegar em uma teoria cientifíca, sendo que não necessariamente seja dada a mesma importância para os dois, mas sim devem ser visto em graus diferentes.
Sobre o analítico Quine crítica a definição kantiana sobre a analiticidade, dizendo que tem duas deficiências:

Kant concebia um enunciado analítico como o que atribuía a seu sujeito e não mais do que já conceitualmente contido no sujeito. Esta formulação tem duas deficiências: limita-se a enunciados de forma sujeito-predicado, e vale-se da noção de um estar contido que é deixado a nível metafórico. Mas a intenção de Kant, evidente mais pelo uso que ele faz da noção de analiticidade do que por sua definição da mesma, pode ser reformulada deste modo: um enunciado é analítico quando verdadeiro em virtude de significados e independente de fatos.[3]

Com isso Quine, também mostra que significar, significado, não deve ser identificado ao mesmo que nomear. Pois como no próprio exemplo que ele nos mostra:

O exemplo de Frege de ‘Estrela Vespertina’ e ‘Estrela Matutina’, e o de Russel de ‘Scott’e ‘o autor de Waverley’ ilustram o fato de que os termos podem nomear a mesma coisa e diferir em significado. A distinção entre significar e nomear não é menos, importante ao nível dos termos abstratos. [...] o mesmo não acontece com o termo geral; mas o termo geral é verdadeiro de uma entidade, ou de muitas, tomadas uma por uma, ou nenhuma. A classe de todas entidades das quais um termo geral é verdadeiro é chamada extensãodo termo. Paralelamente ao contrate entre o significado de um termo singular e a entidade nomeada, devemos distinguir igualmente o significado de um termo e sai extensão. Os termos gerais ‘criaturas com coração’ e ‘criaturas com rins’, por exemplo, são talvez iguais e, extensão, mas diferentes significados.[4]


            Dentro da analiticidade e do significado Quine também coloca em dúvida a hipostatização de entes como “os significados”. Colocando em cheque o pensamento aristotélico sobre a essência, as coisas para Aristóteles, tinham essências, mas apenas as formas lingüísticas possuem significados. O significado é aquilo no que a essência se transforma quando, divorciada do objeto de referência, é vinculada a palavra.
            Com isso cai novamente no problema da analiticidade; os enunciados, por aclamação filosófica geral, são analíticos, que podem ser distribuídos em duas classes, a primeira são chamados logicamente verdadeiros; e a segunda classe de enunciados analíticos, que são  tipificados assim:

Primeira classe: Nenhum homem que não casou é cassado. A característica relevante deste exemplo é a de que ele não meramente é verdadeiro como se apresenta, mas permanece verdadeiro sob toda e qualquer reinterpretação de ‘homem’e de ‘casado. Se supusermos um inventario prévio de partículas lógicas compreendendo ‘nenhum’, ‘in-’, ‘não’, ‘se’, ‘então’, ‘e’, então, em geral, uma verdade lógica é um enunciado que é verdadeiro e permanece verdadeiro, sob todas as reinterpretações de seus outros componentes que não são partículas lógicas.
Segunda classe: Nenhum solteiro é casado. A característica de tal enunciado é a de que ele pode ser transformado em verdade lógica por meio da substituição dos sinônimos, assim (2) pode ser transformado em (1) substituindo-se ‘solteiro’ por seu sinônimo ‘homem que não casou’. Falta-nos ainda uma caracterização apropriada desta segunda classe de enunciados analíticos, e, com isso, da analiticidade em geral, porquanto na descrição acima tivemos que nos basear numa noção de “sinonímia” que, não menos do que a própria analiticidade, precisa ser excluída.[5]

            Quine também expressa a sua dificuldade em conceitual analiticidade afirmando que o problema, entretanto, é a analiticidade e aqui a maior dificuldade encontra-se não apenas na primeira classe de enunciados analíticos, as verdades lógicas, mas antes na segunda classe, que depende da noção de sinonímia.
            Para então definir a analiticidade[6] deve definir a sinonímia[7], com isso Quine passa por vários métodos, chegando a um que se parece confiável e ao mesmo tempo seja tal que não pressuponha o conceito de analítico: a permutabilidade, mas numa linguagem extensional, não é a garantia da sinonímia:

Numa linguagem extensional, portanto, permutabilidade salva veritate não é a garantia de sinonímia do tipo desejado. Que ‘solteiro’ e ‘homem que não casou’sejam permutáveis salva veritate numa linguagem extensional apenas nos garante que é verdadeiro. Aqui nada nos assegura que o acordo extensional de ‘solteiro’e ‘homem que não casou’deva basear-se no significado de preferência a meramente em acidentais questões de fato.[8]

            Quine volta seu olhar novamente para o problema da analiticidade, pois, uma linguagem intencional, só é compreensível se já houver compreendido a noção de analiticidade:

É freqüentemente sugerido que a dificuldade em distinguir enunciados analíticos e sintéticos na linguagem comum é devida à vagueza desta linguagem e que a distinção é clara quando possuímos uma precisa linguagem artificial com “regras semânticas” explicitas, isso é uma confusão. A noção de analiticidade é uma pretendida relação entre enunciados e linguagem.[...] por razoável que seja a priori, uma fronteira entre os enunciados analíticos e sintéticos não foi ainda traçada. Que tal distinção deva ser feita, afinal, é um dogma dos empiristas, sem qualquer base empírica, um metafísico artigo de fé.[9]

            Quine não fica somente na demonstração da crítica, mas também dá uma alternativa, e com essa alternativa, faz a sua segunda crítica e aponta uma solução. 
            Pode se perguntar como fica a teoria verificacional do significado? Com isso Quine comenta sobre como essa teoria se sustenta:

A expressão ‘teoria verificacional do significado’estabeleceu-se tão fortemente como divisa do empirismo que de fato seria muito pouco cientifico não proceder uma busca, sob tal termo, de uma possível chave do problema do significado e de problemas associados.
A teoria verificacional do significado, notória na literatura desde Peirce, afirma que o significado de um enunciado é o método de afirmá-lo empiricamente. Um enunciado analítico é aquele caso-limite que é confirmado em qualquer circunstância.[10]

Qual é a relação entre um enunciado e as experiências, para uma contribuição para sua confirmação ou que a prejudique? A concepção mais ingênua desta relação é a que a considera com relato direto. Isto éreducionismo radical. Todo enunciado significativo é considerado como traduzível em um enunciado (verdadeiro ou falso) sobre a experiência imediata. Em uma ou outra forma de reducionismo radical antecede à teoria explicitamente chamada teoria verificacional do significado.
            Quine também mostra o reducionismo radical de Rudolf Carnap, que usa mais da linguagem, que pode ser visto resumidamente assim, o plano pedia que fossem atribuídas qualidades aos pontos-instantes de tal maneira que se obtivesse o mais indolente dos mundos compatíveis com a nossa experiência. O princípio de ação mínima deveria ser nosso guia na construção de um mundo a partir da experiência.
            Quine afirma que o reducionismo têm continuado, de modos mais sutis e mais tênues, a influenciar o pensamento dos empiristas. E propõe e afirma que a unidade de confirmação empírica de uma teoria não é o enunciado isolado, mas a teoria em sua totalidade, assim uma teoria cientifica não é um mero conjunto de enunciados verdadeiros, mas sim um conjunto de enunciados verdadeiros que se sustentam entre si. Afirma ainda que o dogma do reducionismo está ligado a um outro dogma:

O dogma do reducionismo, mesmo em sua forma atenuada, está intimamente ligado a outro dogma – o de que existe uma separação entre analítico e o sintético. [...] Mais diretamente, um dogma claramente suporta o outro neste sentido: enquanto se considera significante em geral falar de confirmação ou infirmação de um enunciado, parecerá igualmente significante falar de um tipo limite de enunciado que é confirmado vacuamenteipso facyo, aconteça o que acontecer: e tal enunciado é analítico. Os dois dogmas têm suas raízes idênticas.[11]
 3. Conseqüências da crítica de Quine aos dogmas do empirismo
             Uma das mais evidentes conseqüências das críticas de Quine, sem duvidas é o holismo. Desta forma, Quine diz que a unidade de confirmação empírica de uma teoria não é o enunciado isolado, mas à teoria em sua totalidade, com isso vem reafirmar o ‘holismo’, que primeiramente foi pensado por Pierre Duhem, e depois aprimorado por Quine, a partir deste momento à teoria ficou conhecida como Duhem-Quine.
            Ele afirma que uma teoria científica não é um mero conjunto de enunciados verdadeiros, mas um conjunto de enunciados verdadeiros que se sustenta entre si.
            Em que consiste o holismo? O holismo vai dizer que uma teoria é como um campo de forças no qual tudo se liga de maneira sistemática. Apenas a periferia está conectada diretamente ao mundo da experiência, enquanto no núcleo da teoria é composto de enunciados teóricos.
            Não se pode esquecer que a verdade depende tanto da linguagem como dos fatos, mas dessa obviedade não deve descender a existência de dois distintos componentes, factual e lingüístico, tais que alguns enunciados sejam verdadeiros em virtude do componente, e outros em virtude de outro. 
            Essa distinção é questão de graus, de maior ou menor, propensão a abandonar o que se considere verdadeiro. E para não abandonar certas verdades da teoria, um enunciado que se configurasse como falso poderia ser salvo modificado outro enunciado da mesma teoria, ou revendo certos pressupostos não claros.
            O holismo assim pose ser considerado que á uma rede de crenças, onde as informações lingüística, conceituais e dados empíricos ou factuais estão inseparavelmente ligados.
            Desta forma Quine demonstra que a ciência tem uma evolução, a partir da analise dos dados por um todo pode se achar a falha e também construir um novo argumento, assim a uma evolução dos enunciados, se não houver uma evolução externa, acontece uma evolução interna.
            Com isso Quine também crítica a indeterminação de uma tradução de enunciados e conceitos, entre duas línguas que nunca se defrontaram, haverá uma dificuldade para a tradução e comunicação, mas para solucionar isso diz que o tradutor ou lingüista tem que partir das observações para chegar a uma conclusão, tem que fazer a análise comportamental dos individuos juntamente com a analise da língua, assim poderá traduzir da melhor forma aquela sentença.
            Com isso surge uma dúvida se com a indeterminação da tradução implica o abandono da teoria verificacional do significado? Obtemos a resposta em outro ensaio de Quine que é Epistemologia Naturalizada, como pode ver:

O significado empírico continua sendo necessário para a aprendizagem da língua materna pelas crianças e para aprendizagem de uma nova língua para os lingüistas. Nesse ultimo caso, deve-se apoiar as traduções previamente aceitas, mas ao final deve-se reconhecer que as traduções obtidas são arbitrarias, isto é, “que escolhas diferentes também poderiam ter feito dar certo tudo aquilo que pode em principio ser submetido a qualquer espécie de teste”.[12]

Nesse mesmo ensaio Quine tenta fazer uma redefinição do status da epistemologia, que é vista como um simples capítulo da psicologia e, portanto da ciência natural, deixando para traz a sua velha classificação, dessa forma avançando.
Por fim Quine, crítica muito o ponto de vista Hume em relação ao juízo analítico e sintético, mas não descarta algumas contribuições que o próprio Hume dá  para construção da epistemologia. 
Quine propõem um empirismo sem dogmas, um empirismo livresco. Afirmando que passa ser um disatino buscar uma fronteira entre enunciados sintéticos que se baseiam contigentemente na experiência, e enunciados analíticos, validos aconteça o que acontecer. Qualquer enunciado pode ser considerado verdadeiro aconteça o que acontecer.
            Desta forma Quine crítica os dois dogmas do empirismo, mas até certo ponto parece até contraditório da forma que coloca as suas críticas, pois usa dos mesmos métodos para criticá-las, mas não de forma redundante, ele demonstra com sabedoria como deve ser entendido o sistema analítico e sintético.
            Ambos, analítico e sintético devem ser utilizados juntos para chegar a uma analise e uma teoria, às vezes uma sobressairá mais do que a outra, pois elas devem ser utilizadas juntas sim, mas em graus diferentes, e nesses graus se chagará a uma verdade.
            Um ponto a desejar foi que Quine não conseguiu definir a analiticidade e nem sinonímia, pois um exame da analiticidade quer depender da noção de sinonímia será insatisfatória. 
            E para Quine, sua ciências e conhecimento, todos os níveis estão ligados entre si e não há verdades estanques, de tal forma que uma alteração no quadro geral provoca redisposições que repercutem no discurso de toda ciência.  

[1] Acadêmico do 4º período, do Curso de Licenciatura em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR – Campus Maringá.
[2] QUINE, W. V. Dois dogmas do empirismo. In PORCHAT, O. (org.)Ensaios/Ryle, Austin, Quine, Strawson2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 231-248. Col. Os Pensadores. p. 131.
[3] Quine op cit p. 131. 
[4] id., p. 231-232.
[5] Quine op cit.  p. 233
[6] Analiticidade: um enunciado é analítico se for verdadeiro em virtude do significado das expressões. 
[7] Sinonímia: duas expressões estão em relação de sinonímia se tiverem significado igual (solteiro é sinônimo de homem não casado).
[8] Quine. Op cit. p.238.
[9] id. p.239-242.
[10] Id. p. 242.
[11] Quine. Op cit. p.245.
[12] Quine, “EPISTEMOLOGIA Naturalizada” In PORCHAT, O. (org.)Ensaios/Ryle, Austin, Quine, Strawson. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 157-169. Col. Os Pensadores, §. 164.